Para o mundo avesso à penitência e entregue à dissipação, Nosso Senhor enviou nestes dias o recolhimento forçado. Ao menos o recolhimento físico. A alma impiedosa ou morna, que fugia das livres renúncias da Santa Quaresma, não poderá fugir das renúncias forçadas da quarentena imposta pelas autoridades. E assim se confirma, experimentalmente, aquela verdade de que nos fala São Pedro em sua epístola: também os nossos governantes liberais ― ainda que não o queiram, não o admitam ou nem sequer o saibam ― são ministros de Deus para tomar vingança dos malfeitores (1 Pe 2,13).
Os malfeitores somos nós. É a humanidade indiferente, paganizada, atéia na prática, quando não na confissão da impiedade. É o catolicismo falsificado, infectado do vírus modernista. É, enfim, a alma que conheceu a Tradição, que teve a graça de ver o horror da Igreja conciliar, mas não faz a penitência que devia.
A vingança, por outro lado, é branda. As modernas aberrações não merecem menores castigos que os de Sodoma e Gomorra, nem o moderno coração é menos endurecido que o do Faraó do tempo das dez pragas. Mas o Bom Jesus, cheio de misericórdia, medindo bem a nossa fraqueza, preferiu enviar-nos, pelo menos a princípio, essa estranha guerra decretada pelas autoridades, na qual a ordem é se esconder e o plano de combate é fugir do inimigo.
Nossos bons padres já nos fizeram ver a divina ironia de Nosso Senhor diante de nossa tibieza. Sacudiu a mornidão de nossos jejuns e mortificações, escolhendo Ele mesmo um jejum de comunhões e mandando mortificar o acesso à Fonte da Vida. Dizem os espirituais que cortar o supérfluo não é penitência, mas temperança, e que a verdadeira penitência consiste em cortar o necessário. Pois o Médico de nossa alma veio nos cortar o único necessário! Não é acaso, pois, que isso tenha se dado nestes tempos. Quis Nosso Senhor, por assim dizer, preencher Ele próprio o nosso Bilhete de Quaresma.
Tampouco é acaso que, ao menos cá no Brasil, o confinamento tenha se iniciado no Mês de São José, e por volta da sua Festa. Em Niterói, foi em 19 de março a primeira Missa celebrada a portas fechadas na Capela Nossa Senhora da Conceição. Em São Paulo, ao que parece, foi a última grande festa aberta aos fiéis ― que, no domingo seguinte, já não puderam acorrer à Capela São Pio X. E, a se confirmarem as projeções de isolamento social até o fim deste mês de abril, talvez esteja nos planos do seu Filho adotivo só reabrir as nossas igrejas por volta da Festa de São José Operário, a 1º de maio.
O leitor perdoará que estas linhas só agora sejam escritas e publicadas, quando melhor seria honrar o Chefe da Sagrada Família no mês a ele dedicado. É que este autor, mais que os discípulos de Emaús, é tardo do coração. Possa a sinceridade da devoção compensar um pouco o retardo da obra.
Em todo caso, embora tardia, a reflexão se impõe: haveria para nós, nestes dias, melhor modelo de recolhimento do que São José? Isolados em casa, poderia a Providência dar-nos farol mais luminoso que a Luz dos Patriarcas, o Chefe da Casa de Nazaré? Confinados em família, poderíamos recorrer a patrono mais valioso do que àquele que é a Honra da vida doméstica?
Se a ordem é nos escondermos, que São José nos obtenha a graça de desejar a vida escondida que ele mesmo viveu. Se, a fiar pelos discursos oficiais, a maior coragem do momento é fugir do inimigo, que busquemos modelo na Fuga para o Egito, cercada de ainda maiores riscos de pobreza, riscos de vida, riscos de futuro incerto. E se nos parecem irrazoáveis as ordens às quais devemos obediência civil, miremos a santa obediência do Esposo da Virgem, guiando-a num burrico, às vésperas do parto, por mais de uma centena de montanhosos quilômetros, para se inscrever num censo muito menos razoável.
O fruto bendito da santa obediência civil de São José foi o cumprimento da vontade de Deus, revelada por meio dos profetas, de que o Cristo nascesse em Belém. Que a nossa obediência nos alcance, pela intercessão do Santo Patriarca, os desígnios que a Divina Providência nos revela por meio de nossos incansáveis sacerdotes: maior amor aos Sacramentos; maior fervor nas comunhões; resolução mais firme nos propósitos de emenda; gratidão mais profunda pela graça de vivermos (os que vivemos) às portas de algum oásis da Tradição, quando tantos estão na aridez; maior compaixão pelas almas contaminadas pelo vírus modernista, para as quais a regra de vida é uma inconsciente quarentena em que jejuam comunhões, se isolam dos sacramentos, se distanciam da graça, e tiram de circulação as verdades da Santa Religião.
Mas é em outro mistério da vida de São José que buscaremos as maiores lições para os tempos presentes: quando o zeloso defensor de Jesus se afligiu de tê-Lo perdido na volta de Jerusalém, e Maria Imaculada receou ter falhado no seu dever. Que mistério! A Imaculada Conceição a julgar-se culpada; o guarda da Sagrada Família, cheio de prudência e fortaleza, a sentir-se negligente; um e outro a se perguntarem se não seria agora que a profecia de Simeão iria cumprir-se, e a espada transpassar o Coração Doloroso da Virgem Mãe. E isso por “culpa” de ambos ― assim temiam.
Também nós nos afligimos de ter perdido de vista a Presença Real de Jesus Sacramentado. Olhamos ao redor, e não O temos em nossa companhia. Nós, que não somos imaculados, nem gozamos as virtudes de São José, com muito maior razão nos angustiamos, sob o pesado fardo de nossas culpas. O que na alma de São José e da Virgem Imaculada era uma dor imerecida, em nossa alma é a dura certeza de um castigo menor que o merecido: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Temos a graça de participar, embora cheios de culpa, nos sofrimentos que padeceram Nossa Senhora e São José, embora cheios de inocência.
E que fizeram eles? Voltaram atrás. Percorreram as ruas, indagaram, rumaram de volta à cidade santa, até encontrar Jesus no Templo, três dias depois.
E que faremos nós? Voltemos também, regressemos à nossa primeira caridade, que talvez tenhamos deixado para trás (Ap 2,4), pois “muitas vezes experimentamos que éramos melhores e nossa vida mais pura no princípio da nossa conversão do que depois de muitos anos de profissão” (Imitação I, XI, 5).
Percorramos as ruas de nosso castelo interior, indaguemos ao Anjo da Guarda, à memória de nosso coração, ao fundo de nossa alma: onde está aquele Amor que já foi maior, e que perdemos na jornada, talvez sem nem perceber?
Esforcemo-nos e peçamos a graça de progredir nos três dias da nossa vida espiritual: o dia purgativo, o dia iluminativo e o dia unitivo, de que falam os místicos. Busquemos a Jesus nos três dias do Santo Rosário: os gozos, as dores e as glórias dos 15 mistérios. Se queremos ir atrás de sua Sagrada Face, sigamos os três passos que Ele nos exige: “se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome sua cruz, e siga-me” (Mt 16,24).
Renunciemos às nossas opiniões e curiosidades, às panelas batidas de um lado e de outro, aos rumores e ao burburinho das redes, ao turbilhão do homem exterior.
Tomemos, por um pouco de tempo, e bem menos pesada, a cruz que outrora carregaram nossos antepassados da Permanência, que atravessaram a desolação pós-conciliar sem missa (presencial ou virtual), sem comunhão, sem vida paroquial, e cujas famílias nos legaram os sacerdotes que hoje nutrem nossas almas. Sigamos a Nosso Senhor em verdade e espírito, no recolhimento do retiro, de uma longa e caseira primeira semana de um Retiro de Santo Inácio, em que ― como hoje ― só é permitida a comunhão espiritual.
Tiremos todo o proveito da ocasião, porque, ao passo que a Santíssima Virgem e São José se afligiam na incerteza da procura, nós devemos ter a inabalável convicção de que encontraremos sempre, no Templo da Santa Igreja, a Presença Real de Nosso Senhor. Sempre, infalivelmente, na Nova Jerusalém, a sã doutrina da única Religião verdadeira. Se é verdade que nos pesa a culpa que São José não tinha, ao menos nos consola a confiança no reencontro que para ele era incerto.
Ousemos pedir a São José que nos alcance a graça que, naquele ditoso reencontro, nem mesmo ele e sua Esposa Imaculada receberam de pronto: a graça de entender, em toda a plenitude, no fundo de nossa alma, o que Nosso Senhor quer dizer a cada um de nós com esta privação (Lc 2,50). O fruto desse entendimento não poderá ser outro que aquele que pedimos a cada terço gozoso: buscar, na prática de cada dia, a vontade de Deus em todas as coisas.