Meditações de Quarentena II



Modelo dos trabalhadores: as mãos na vida prática, a alma na vida interior, o coração em Jesus.
(Menino Jesus. Gerard von Honthorst, óleo sobre tela, 1620.)

Já me desculpei aos leitores de só escrever estas meditações depois de terminado o mês de São José. Mas Dom Lourenço vem insistindo conosco que, por decisão de Nosso Senhor, a Quaresma deste ano foi estendida e mesclada aos aleluias da Páscoa. Estimulado por essa orientação do nosso pastor, peço licença para esticar também o mês de São José e continuar estas atrasadas meditações que, se o leitor julgar úteis, talvez possam ajudá-lo a preparar-se para a próxima grande festa da Igreja, a 1º de maio ― quem sabe, se Deus permitir, dentro de nossas Capelas.

Assim, com o auxílio de São José, meditemos mais a fundo isto que no último post ficou apenas pincelado: que devemos aproveitar o recolhimento exterior e forçado, para aprender, com o Esposo da Mãe de Deus, o livre recolhimento interior que ele praticava em meio a uma vida cheia de afazeres.

A introspecção espiritual, o mergulho no abismo de nossa alma em busca de Deus, foi muitas vezes simbolizada na atitude do homem que se recolhe em casa. Santa Teresa compara a vida da alma a um castelo interior. Chesterton fala de uma longa jornada, que contorna o mundo e termina em casa, para descrever sua conversão. Nosso Corção narrou a sua como a vitória do sobrado, o andar caseiro e familiar, sobre o primeiro pavimento de sua casa, que era uma espécie de território ocupado, de enclave mundano, de invasão da rua lar adentro. E o Verbo Encarnado fez da tocante história do filho pródigo, que retorna à casa do pai, a parábola da conversão por excelência.

Mas o retorno à casa não se resume a um simbolsimo. Sempre foi um conselho bem prático para cultivar as virtudes, refrear os desejos, precaver-se dos perigos, ordenar as afeições. Corção define a volta para casa como momento em que o homem reintegra os cacos em que vai se desfazendo na vida da rua: a ida ao trabalho o retalha e dissipa; a volta para casa refaz sua unidade, o faz lembrar quem ele é. O autor da Imitação de Cristo diz que é “mais fácil encerrar-se numa casa do que guardar-se como convém fora dela”, porque “aquele que mais se afasta de seus amigos e conhecidos, mais consegue que Deus se chegue a ele com seus anjos” (I, XX, 2.6). Encerrar-se em casa, nesses conselhos espirituais, equivale a buscar o silêncio e o sossego, fechar ouvidos ao ruído do mundo para ouvir a voz de Deus em nossos corações: “é no silêncio e sossego que a alma piedosa progride e penetra nos segredos da Escritura” (I, XX, 2). Sob este ponto de vista, guardadas as devidas proporções, a casa é a clausura dos leigos, a exemplo daquela casinha nazarena chefiada pelo mais monástico dos maridos e o mais silencioso dos santos, de quem não se ouve a voz nem uma só vez em todo o Evangelho, e a quem tantas vezes se achegaram os anjos do Senhor: “José, não receies receber Maria por esposa” ― “Foge para o Egito” ― “Volta para a terra de Israel” ― “Parte para a Galiléia”.

Estas piedosas palavras, todavia, trazem um grave perigo. Arriscam soar muito belas, mas igualmente impraticáveis. A mãe de família cercada de filhos confinados, ou o pai que com eles disputa o computador improvisado de home schooling e home office, não vêem à volta muito silêncio e sossego. Blaise Pascal, nos Pensamentos, diz com razão que “todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade do homem de ficar quieto, sozinho em uma sala”. Mas para muitos de nós, parece que o problema é não haver sala onde se possa estar quieto e sozinho.

Ora, o chamado à santidade é um assunto muito prático para ser tratado como tese acadêmica, ou pior, para se fundar em ilusões. A vida espiritual não é uma visão romântica que só se pode aplicar em condições ideais. Ela é prática como o trabalho de um carpinteiro. Daí o lúcido Corção, neste outro artigo, denunciar os “moralistas de convenção”, os “ufanistas da casa”, que “referem-se freqüentemente às doçuras da vida familiar e ao suave remanso do lar”, fingindo não saber que “às vezes a atmosfera fica tão sufocante, dentro de casa, que a rua se torna um paraíso apetecido”. E adverte: o romantismo de uma vida familiar de desmedida felicidade engendra as frustrações mais perigosas, que arriscam terminar na “impressão de uma irreparável destruição, de uma incompatibilidade sem remédio”, contra a qual “parece inútil lutar, tempo perdido insistir”, pensamentos estes que, “uma vez que se instalem, vão corroendo em nós aquelas mesmas reservas em que deveríamos buscar a recuperação”.

Também aqui nosso guia e nosso mestre deverá ser o fidelíssimo São José, que jamais se rendeu a nenhuma tentação de desesperança ou de injustiça, nem quando foi provado pelo duríssimo espanto da gravidez de Nossa Senhora, sem nada saber da Divina Encarnação. “Mas José, sendo justo, e não a querendo difamar, resolveu deixá-la em segredo” e atrair sobre si, aos olhos dos demais, a infâmia que de outro modo recairia sobre sua santíssima esposa.

Já nós, se me permitem a confissão extra-auricular, muitas vezes parecemos aquele Dmitri dos Irmãos Karamázov, homem sensual e dissoluto que adiava a conversão para um futuro de circunstâncias perfeitas. Será puro quando tiver sua amada Grúchenka, quando fugir da podridão daquela vida mesquinha, daquele ambiente, daqueles amigos, para a terra prometida de seus sonhos. Nós também somos tentados a responder ao chamado prático da santidade com uma aceitação condicional: seremos santos quando tudo à nossa volta se ajustar, o cônjuge se emendar (ou aparecer), os filhos crescerem (ou nascerem), a família for perfeita. Enquanto isso, o irmão de Dmitri, Aliócha Karamázov, ia fazendo o bem que podia naquele meio em que Deus o colocou. Enquanto isso, vamos nós desperdiçando os meios que Deus nos deu para o nosso aperfeiçoamento.

No entanto, como mostra a Sagrada Família, Nosso Senhor nos chama para uma vida de combate em meio a durezas, quer no deserto dos eremitas, quer na casa de pouco silêncio e sossego, ou até de muitas desavenças. Nesse combate, o maior inimigo não são as circunstâncias externas, mas o ruído e a agitação interiores. Mais que o silêncio das salas e o sossego das crianças, o que Deus nos pede é o silêncio da alma e o sossego de nosso próprio coração: a felicidade desmedida está reservada para a vida eterna.

Vêm a calhar os conselhos da Imitação, que poderiam ser os conselhos de São José: “Procura a paz primeiro para ti mesmo, e depois poderás procurá-la para os outros. Suporta os outros, se queres que te suportem a ti. Não é ação de grande merecimento viver em paz com os bons e mansos” ― isso, até os pagãos fazem ― “mas viver em paz com os ásperos, perversos e de má condição, ou com aqueles que nos contrariam e combatem, é grande graça e ação destemida e louvável” (II, III, 1-2). Quantas vezes a mais árdua aspereza, a mais dura contrariedade, o mais temível combate, é aquele que se trava no conta-gotas da convivência familiar, nos atritos caseiros, nas pequenas e duradouras oposições em que o próximo parece inimigo, talvez para nos lembrar que devemos ao inimigo amor e orações.

É bem verdade que, tendo a Imaculada por esposa e o Homem-Deus por filho adotivo, São José não enfrentou essas misérias humanas em família. Nem por isso passou incólume de asperezas e perversidades muito mais duras que as nossas. É nosso Espelho de paciência, para que a ele levantemos o olhar como modelo a imitar, e nele vejamos o reflexo de nossa própria impaciência. Depois do Homem das Dores e da Mãe Dolorosa, ninguém melhor que ele terá cumprido esta palavra de vida, que séculos mais tarde foi transcrita da alma de São José para as páginas da Imitação: “quem melhor souber padecer, mais paz terá” (II, III, 3).

Além disso, se é impossível conceber a menor discórdia ou indisciplina no seio da Sagrada Família, é por isso mesmo nos servem de modelo, e por isso mesmo se apiedam de nós aquela Mãe e aquele pai adotivo que foram os mais fiéis discípulos de Jesus. Pois assim como o Salvador veio para os pecadores e doentes, e não só para os sadios, assim também São José não é Amparo das famílias perfeitas e santas somente, mas também das defeituosas e muito imperfeitas, desde que queiram os seus membros, ou algum de seus membros, seguir a prescrição da cura.

Essa prescrição ― não falo enquanto médico, mas como o doente que, à custa de muitas recaídas, acaba conhecendo a própria enfermidade ― começa pela proibição de fugir, de abandonar a prova. É uma espécie mais elevada e profunda de “fique em casa!”. As fugas de José fortíssimo foram sempre atos de bravura, seja aquela apenas ideada na perplexidade antes da primeira aparição do anjo, seja aquela executada na obediência depois da segunda aparição. São José fugia em direção ao dever, rumo à virtude, ao encontro da vontade de Deus. Fugia como Abraão fugiu de Ur, como Lot fugiu de Sodoma, como Moisés fugiu do Egito. Já nós, pobres de nós, fugimos do dever em direção ao conforto, da penitência para o pecado. Não corremos de um perigo invencível, mas da luta cuja vitória nos foi assegurada. Fugimos como o desertor, para o desalento ou o conformismo contrários à santa esperança.

“Daí o terrível inconveniente”, diz Corção, “de se armar a chamada harmonia familiar em termos de evasão”. Evasão dissimulada às vezes de diligência no trabalho ou de prestimosa atenção aos amigos. No entanto, “aquele que pretende chegar às coisas interiores e espirituais deve afastar-se da multidão com Jesus”, pois “a saída alegre faz muitas vezes a volta triste” (Imitação I, XX, 2.6).

Vem Nosso Senhor e nos corta a saída, dispersa a multidão, fecha a porta da casa em pleno mês de março. Quer que olhemos a São José para lembrarmos a descoberta do pequeno Plácido: “a vida interior é interior”; e também, como lembra Dom Estêvão num de seus sermões à distância, que o próximo é aquele que está próximo. Mas, como não há mérito sem combate nem combate sem esforço, Nosso Senhor deixou aberta uma última porta, justo a mais perigosa, a moderna porta larga que a nós, e só a nós, nos compete lacrar. Sim, porque nunca foi tão fácil estar fora de casa sem sair dela.

O que hoje mais nos enreda e apega ao mundo não é mais a porta da rua, mas a porta digital que se abre com o dedo e nos leva ao encontro das multidões virtuais, ao falso silêncio dos fones de ouvido, ao falso sossego da curiosidade insaciável, que lança a alma para fora de casa e mata a vida interior: “Se te afastares de conversações supérfluas e passeios ociosos, como também de ouvir novidades e murmurações, acharás tempo para te entregares a santas meditações” (Imitação I, XX, 1) ― nada de novo sob o sol… Os demônios de nossa covardia se aglomeram na evasão eletrônica, que é a forma de evasão mais tentadora e fácil, mais disponível e democrática. E assim, feito o filho pródigo, dilapidamos o tesouro de santificação ocasionada pelas relações presenciais, das pessoas reais do ambiente doméstico, “onde são múltiplas as oportunidades de lucro”, pois “é nos choques cotidianos que cada um encontra as mais ricas oportunidades de exercer as virtudes ― e quem diz exercer, nessa matéria diz adquirir” (ainda Corção). Trocamos esse tesouro pelas bolotas de porcos servidas nas redes sociais, e perdemos até a paz que não tínhamos. Bons tempos aqueles, em que Corção podia se compadecer da “pobre gente condenada a procurar até em casa a anticasa multiplicada pela televisão”. Hoje multiplicou-se a televisão em smartphones e aplicativos de conteúdo on demand.

A pior pandemia que nos ameaça não é aquela que pode matar o corpo, e que recheia as manchetes de jornais, os feeds, os trending topics. Contra esse outro vírus, a peste eletrônica que contamina a alma, a máscara eficaz não é exterior, mas espiritual. Lembremos de pedi-la a São José a cada fim de cada terço, quando imploramos ao pai amantíssimo que afaste para longe de nós a peste do erro e do vício.