Consta de um apócrifo o relato de que, na passagem da Sagrada Família pelo Egito, os ídolos pagãos não resistiram à presença de Deus Encarnado, e ruíram. A fonte duvidosa não nos deve assustar: apócrifo é um livro que não foi inspirado pelo Espírito Santo e que, por isso, a Santa Igreja, guardiã das Escrituras, não incluiu no cânon da Bíblia. Mas daí não segue que toda e qualquer passagem que conste de um apócrifo seja necessariamente fantasiosa ou errônea.
No caso específico, o fato parece conformar-se a uma profecia de Isaías (Is 19, 1). A arte cristã não cessou de retratá-lo, e a piedade dos fiéis o acolheu com fervor. A coroinha em honra das sete dores de São José, por exemplo, alude ao sumo gozo do esposo da Virgem “por verdes cair por terra os ídolos egípcios” (Mês de São José).
Terá sido muito delicado e providencial, da parte de Nosso Senhor, ter reservado a queda desses falsos deuses à passagem da pequenina caravana encabeçada por São José. Afinal, “todos os deuses dos pagãos são demônios” (Sl 95,5) e a Igreja honra o castíssimo patriarca com o título de Terror dos demônios.
Nem se trata de fato sem precedente. O próprio Egito, que séculos antes fora salvo por outro José, teve de se dobrar e confessar o braço poderoso do Deus de Israel nos tempos de Moisés. Enviada a terceira praga, os magos do Faraó, que até então gracejavam prodígios para ombrear os castigos divinos, tiveram de admitir que “o dedo de Deus está aqui”. Ao anúncio da oitava praga, foram os próprios servos do palácio do Faraó que se renderam à evidência: “Até quando sofreremos nós este escândalo? Deixa ir estes homens, a fim de que ofereçam sacrifício a seu Deus; não vês que o Egito está perdido?” E quando a justiça divina feriu os primogênitos dos egípcios, foi a vez de o próprio Faraó e todo povo apressarem os judeus a saírem do país, como ordenava o Senhor, reconhecendo que, do contrário, “morreremos todos” (Ex 8,19; 10,7; 12,31-33).
Ora, se tivermos olhos de ver, talvez estejamos a testemunhar espetáculo correlato. Nossos rios não se converteram em sangue, nem se abateram sobre nós as rãs, os mosquitos, as moscas, as úlceras, o granizo ou os gafanhotos do Egito. Veio apenas um minúsculo vírus, de letalidade muito aquém do anjo exterminador, e cujas consequências econômicas, por mais severas que sejam ― sobretudo para nós, amolecidos pelos confortos imoderados do Ocidente apóstata ― ainda não são nada frente à pestilência, o granizo e os gafanhotos que arrasaram com todos os animais dos egípcios, e todas as suas árvores, e seus frutos, e a erva do campo (Ex 9,6.25; 10,15). Bastou, pois, uma praga muito mais branda para que os desgostosos liberais à nossa volta começassem a acusar o golpe e a deixar cair por terra um de seus ídolos mais adorados.
Em breve me faço entender. Antes, permitam-se recorrer a uma ideia magistralmente exposta pelo Pe. Luiz Cláudio Camargo, na sua revigorante conferência de 50 anos da Permanência, transcrita na edição especial da revista, que é a seguinte: os princípios que animam uma sociedade só são verdadeiramente testados nos momentos de crise. “Um princípio que produz seus frutos mesmo no meio da derrota é muito mais evidentemente verdadeiro” (p. 58).
Nosso Senhor veio em obediência ao Pai e por amor dos homens; foi obediente até a Cruz, e nos amou até o fim. O Apóstolo, tomando o exemplo de Abraão, nos exorta a esperar contra toda a esperança, pregação que ele mesmo seguiu à risca, sem se deixar abater pelos cárceres, os açoites, os naufrágios, as sedições, a fome, sede, frio e nudez de que fala aos coríntios. E os santos mártires! Essas almas que não temeram a morte, que suportaram as torturas mais cruéis, que padeceram e agonizaram às vezes cantando e sorrindo, tudo pela fortaleza da Fé.
As almas santas, quando provadas no teste de fogo das maiores crises, fizeram resplandecer os princípios teologais que animam a Igreja. Venceram na derrota. Prevaleceram as três virtudes teologais, a começar pela Fé, cujo testemunho por excelência é o martírio. E os pagãos antigos, duros e pecadores como os pagãos de hoje, mas ao menos mais corajosos e lógicos, aceitaram muitas vezes a graça da conversão diante da fortaleza sobre-humana daqueles heróis da Fé. Uma tal religião de homens que morriam mais serenos que os estoicos e mais felizes que os hedonistas, só podia ser a religião verdadeira. Esse argumento, defendido nas almas romanas pelo divino Espírito Santo, converteu a civilização pagã perseguidora.
Agora comparemos isso à atual conjuntura. A civilização moderna substituiu a Fé e suas verdades pela Liberdade e suas licenças. A começar pelo livre exame protestante, a liberdade é o falso princípio que apóia a república apóstata. É o ídolo máximo da tríade revolucionária que nossas sociedades adotaram em substituição às três virtudes teologais. Tão adorada é essa falsa deusa, perante a qual queimam incenso todos os chefes de Estado e muitos dos povos outrora cristãos, que sua estátua está fincada no coração da grande pátria fundada por protestantes que nos acusam de idólatras: La Liberté éclairant le monde, construída por Gustave Eiffel como retribuição da III República maçônica à ajuda que os norte-americanos haviam dado à revolução de 1789, e evocando, com seu manto em estilo romano, a Libertas pagã.
Veio o coronavírus, não a peste negra. E nossos governantes liberais, à frente de povos liberais, foram calando as suas adoradas liberdades em nome da saúde pública. Nos Estados Unidos, terra prometida da liberdade religiosa, ao menos dois “pastores” foram presos por realizar cultos religiosos de grande afluência. As redes sociais, que admitem todo tipo de palavrório, censuram opiniões potencialmente perigosas ao combate à pandemia. O judiciário brasileiro expede ordens proibindo carreatas e campanhas publicitárias contra o chamado isolamento horizontal. Autoridades locais ameaçam o uso da polícia contra a outrora inofensiva caminhada à beira-mar. Estão fechadas as fronteiras da grande sociedade aberta, e não decolam os aviões nem circulam os coletivos que garantem a liberdade de ir e vir.
Liberdade de culto, de associação, de expressão, de ir e vir, de iniciativa econômica, todas se curvam ante o imperativo sanitário. São princípios descartáveis em face de um perigo, princípios que já não principiam. Samuel Johnson teria dito que “a mente do homem prestes a ser enforcado adquire, de repente, um admirável poder de concentração”. Os liberais do mundo todo, confrontados com a ameaça sanitária, parecem ter concentrado maravilhosamente a sua atenção no que é, de fato, principal. Decerto, como o Faraó, irão endurecer o coração quando a peste passar, e se entregar de novo aos devaneios liberais, assim como o Egito permaneceu pagão por muitos séculos depois da libertação dos hebreus. Mas ficará a lição: os idólatras da liberdade antepuseram a sobrevivência e sacrificaram a falsa deusa que adoravam da boca para fora.
A se fiar no discurso das autoridades sanitárias, as medidas presentes se impõem para salvar vidas e sua eficácia depende da adesão social, que estaria seriamente comprometida pela propaganda contrária, pela dita fake news. Supondo que estejam certos, o que esses liberais estão dizendo, no plano natural e naturalista, é semelhante ao que diz a Igreja: não há liberdade para o erro. Negam liberdade aos atos e opiniões que podem causar dano ao corpo, assim como a Igreja de Cristo (a verdadeira, não a dissimulada) nega e sempre negou liberdade aos atos e opiniões que podem causar dano à alma, seguindo nisso a advertência de Nosso Senhor, que manda temer o que pode lançar a alma no inferno, mais do que aquilo que apenas mata o corpo (Mt 10,28). Daí a Inquisição, daí a censura eclesiástica, o Index, a confessionalidade dos Estados católicos, a condenação dos erros do Vaticano II.
Diante disso, não nos associemos às muitas vozes conservadoras que acusam de “tiranetes” essas autoridades e denunciam o “ovo da serpente”. Esses críticos partem de um falso princípio. Se viermos a constatar que as medidas atuais são exageradas, não deverá jamais ser por apego à falsa deusa liberal, mas por amor católico à verdade, e pelos critérios da prudência cristã, que é a virtude moral mais grave (e mais árdua) no exercício da autoridade. Esses serão os juízes futuros da atual quarentena, e não a moeda falsa da liberdade que inspira a rebeldia civil, tão distante do exemplo de São José.
Afinal, quanto vale um suposto princípio que, feito o tesouro muito brilhante e muito pesado que um navio transporta, é lançado ao mar no primeiro sinal de tormenta? Ele já titubeia, já treme no seu pedestal. Não percamos a chance de, invocando São José, Terror dos demônios, derrubar de vez esse ídolo, senão na sociedade política, ao menos em nossas pequenas sociedades que são os priorados, as capelas, as famílias da Tradição.