“Há o orgulho, esse vício capital que mais do que tudo pesa no mundo do homem. Vício geral, vício universal, apego do eu, desregrada estima de sua própria excelência, erro interior, falsa avaliação do próprio ser, afronta a Deus único e perfeito.
Se nós escrevemos num papel amassado “orgulhoso” e o soltássemos dum oitavo andar da Avenida Rio Branco, ele cairia certo, em cima de rico ou de pobre, de sábio ou de néscio. Certíssimo. Luva para qualquer alma. Adjetivo para qualquer humano substantivo.
O orgulho é o primeiro e último vício, o mais persistente, o mais difundido. Não há idade que lhe resista; não há condição social que dele se defenda. A concupiscência tem momentos de pacificação. Arde em desejos quando não possui, mas pacifica-se, neutraliza-se quando atinge o bem cobiçado. O orgulho, não. Quanto mais servido mais ampliado fica. É uma fome inextinguível. Quando parece estar pacificado é justamente quando está mais exasperado. O orgulho é uma coisa feia. É sobretudo uma coisa transcendentalmente ridícula. É a mais comumente merecida das acusações, mas é também a mais grave.
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O orgulho é um movimento da vontade, e procede de um erro, de um equívoco central. Sua composição é pois em tudo contrária à luz: é uma teimosia em campo obscuro, alimenta-se de erro, e desenvolve-se na medida em que a vontade não consulta a sua regra. Tanto pode ocorrer num homem de estudo como num homem iletrado, mas é mais provável que se desenvolva naquele que se nutre de mentiras vitais e que não se examina. O que se pode sensatamente dizer do homem muito lúcido, do poeta, do filósofo, é que a sua parcela de orgulho fica mais pública, mais visível. Mas não se pode dizer que essa parcela existe nele por causa da lucidez, da poesia e da filosofia. Não. Anda por aí muito orgulhoso calado, muito orgulhoso sem armas, muito orgulhoso que inventa seu próprio universo moral, que acha sozinho, na latrina talvez, a sua própria filosofia, a sua própria religião.
Como porém esse homem é materialmente modesto, diz-se que é humilde. O bombeiro hidráulico que anda inventando o moto-contínuo é humilde. Mas o homem que esperou calado, quieto, inédito, uma religião dada por Deus e uma filosofia construída em 2.500 anos pelo gênio de seus antepassados é orgulhoso. A mocinha divorcista que chama de amor o que é comédia; que não sabe o que é casamento; o que é homem; o que é uma sociedade de homens; e quais são as exigências que decorrem da natureza das coisas, e que fala alto do que nunca pensou, e que tira argumentos das glândulas, essa é humilde. Ao contrário, quem procurou destrinchar o fio confuso da grande lei natural, quem faz de sua inteligência o espelho das coisas, quem estuda, quem lê, quem ouve, quem passa anos calado, debruçado, atento, esse é orgulhoso. E quanto mais lógico mais orgulhoso.
É possível que um certo orgulho, um certo apego de si mesmo produza no homem estudioso um movimento de irritação diante da estúpida soberba que encontra na mediocridade. É possível que sua intolerância tenha um zelo amargo quando vê o alegre desembaraço com que a estultice anda no mundo. Mas será razoável tirar dessa intolerância um sinal de orgulho? Não ocorre que possa nascer do imperativo das evidências vistas, contempladas, veneradas. Para muita gente — e este é outro lugar comum que precisa ser re-examinado — a intolerância é correlata do orgulho.
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Não é na perspicácia e na lucidez que o orgulho escolhe seu abrigo dileto. É antes na obscuridade e na estupidez. Um homem extraordinário, como por exemplo um Einstein, ou um Bérgson, poderá ser orgulhoso. Mas eu diria que o é por não ser bastante inteligente. Todos nós temos nossas zonas obscuras, todos nós, mal ou bem, pagamos o imposto da burrice, e é nessa mesma medida que seremos orgulhosos.
É um lugar comum, um bom lugar comum, o que diz que o homem quanto mais estuda mais sabe o que ignora. Creio que foi Pascal que teve a idéia de representar a conquista intelectual do homem por um círculo. A área do círculo é a ciência, o perímetro da circunferência é a fronteira do ignoto e portanto a medida da ignorância. Ao contrário, o tolo que folheou um almanaque julga-se possuidor dos mais transcendentes arcanos.
Torno a dizer que é possível encontrar um grande orgulho numa grande inteligência. Esse conúbio é trágico para quem o carrega, e para o mundo. Faz medo. É terrível. Tudo isto é exato, mas nunca eu diria, nem insinuaria que uma coisa acompanha outra, ou que seja nos sinais de inteligência que se deva buscar a revelação do orgulho.
Hoje, na confusão, no caos de opiniões abortivas em que nos movemos, quem tiver convicções tiradas da evidência aritmética ou filosófica, será considerado intolerante e orgulhoso. A humildade, ao contrário, nessa feira livre de idéias apodrecidas, tornou-se sinônimo de tolerância, de complacência. Tornou-se, desculpe-me a expressão, uma blandiciosa cafetina das idéias baratas.”
Gustavo Corção, Revista Permanência 265.