Há alguns meses, o Padre Paulo Ricardo resolveu falar sobre doação de órgãos, e como habitual se apoiou na (pseudo) doutrina da igreja conciliar, citando documentos como o catecismo amarelo de 1992 e a encíclica de João Paulo II, Evangelium vitae.
Aos incautos leitores ou espectadores da exposição, passa batido uma questão muito mais importante que a doação de órgãos: a licitude, segundo critérios morais, de se atribuir a um determinado indivíduo o estado de morte. Porque, se morreu, é lícito doar quaisquer órgãos “viáveis”, mas se não morreu, é evidente que não se pode doar um órgão vital, que ‘incapacite fisiologicamente’ o indivíduo, ou mesmo que lhe cause dano, podendo levá-lo de fato à morte.
Sabemos por experiência que a doutrina dos homens de igreja do final do século XX, assim como do desamoroso século XXI, atribui à comunidade científica autoridade inconteste para delimitar com seus princípios éticos pouco claros, por vezes nada católicos, o que é a morte. Evita assim perguntas incomodas, se prestando ao papel de Herodes ao se deparar com a Verdade Encarnada, que por temer represálias, delega a outrem o Seu juízo, rebaixando sua autoridade sem perder a pose.
Tomemos como exemplo outro texto citado pelo padre professor, do papa João Paulo II: Discurso aos participantes do 18.° Congresso Internacional sobre Transplantes, de 29 agosto de 2000 (todos os negritos são meus):
“A respeito disso, é oportuno recordar que a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário e integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida neste sentido original, é um evento que não pode ser directamente identificado por qualquer técnica científica ou método empírico. Mas a experiência humana ensina também que o evento da morte produz inevitavelmente sinais biológicos, que a medicina aprendeu a reconhecer de maneira sempre mais específica. Os chamados “critérios” de certificação da morte, usados pela medicina moderna, não devem portanto ser entendidos como a determinação técnico-científica do momento exacto da morte da pessoa, mas como uma modalidade cientificamente segura para identificar os sinais biológicos de que a pessoa de facto morreu.”
Em resumo o papa “ensina” que a morte se dá na separação da alma e corpo [note seu vocabulário]. Depois diz que esse momento não pode ser identificado, mas que a ‘experiência humana ensina’ (…). Então são criados critérios de certificação de morte usados pela medicina como modalidade (modalidade – seria essa a última moda?) cientificamente segura para determinar se uma pessoa morreu.
Seria respeito humano da minha parte deixar de denunciar a contradição nas palavras do papa, e na atitude do padre Paulo Ricardo, de não esclarecer esse ponto, nem em seu escrito, nem em seu vídeo, posto que fala da morte do doador, sem citar se esta seria somente a morte cerebral, embora indique um discurso do papa que salienta este aspecto. Citemos novamente (de novo, os destaques são meus):
“Sabe-se muito bem que, desde há algum tempo, diversas abordagens científicas da certificação da morte transferiram a ênfase dos tradicionais sinais cardiorrespiratórios para o chamado critério “neurológico”, nomeadamente para a constatação segundo parâmetros bem determinados e em geral compartilhados pelacomunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer actividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal. Diante dos parâmetroshodiernos de certificação da morte quer se refira aos sinais “encefálicos”, quer se faça recurso aos mais tradicionais sinais cardiorrespiratórios a Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa, evidenciando semelhanças e eventuais contradições, que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente adoptado, isto é, a cessação total e irreversível de toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia. Como consequência, o operador no campo da saúde que tem a responsabilidade profissional da certificação da morte pode basear-se neles para alcançar, caso por caso, aquele grau de certeza no juízo ético que a doutrina moral qualifica com o termo de “certeza moral”, a qual é a base necessária e suficiente para se poder agir de maneira eticamente correcta. Portanto, só na presença dessa certeza será moralmente legítimo activar os necessários processos técnicos para a remoção dos órgãos a serem transplantados, tendo o médico sido informado do prévio consentimento do doador ou dos seus legítimos representantes.”
Aqui o papa atribui à “sólida antropologia” o aspecto determinante para a “certeza moral” do profissional de saúde na decisão da remoção dos órgãos do “doador”, não antes de se curvar à comunidade científica internacional, que ‘abandonou’ os sinais cardiorrespiratórios pelo hodierno critério neurológico.
Mas voltemos ao padre. O leitor poderia me indagar se ele teria se esquecido, ou mesmo completado o raciocínio noutro vídeo ou noutra parte. Pensei o mesmo, e não encontrando a resposta em busca simples pela internet, resolvi perguntá-lo diretamente, escrevendo nos comentários à aula, no mesmo abril de 2018. Mas não obtive resposta até hoje. Transcrevo abaixo alguns desses comentários, todos de 5 a 8 meses atrás:
Fernando Barros: Faltou o principal nesse comentário: que é e quando se dá a morte do ser humano? Que é morte cerebral? Se entendermos que a morte se dá quando a alma se separa do corpo, e não apenas quando cessam os reflexos do tronco-encefálico, os transplantes mais celebrados (coração, pulmão inteiro e fígado inteiro) tornar-se-iam ilícitos.
FB: “Morte cerebral” é um termo legal, cujos critérios ou exigências mudam conforme o país ou mesmo o estado (caso dos EUA), e às vezes, de acordo com a disponibilidade de equipamentos médicos no estabelecimento em que se encontra o paciente – notar que ele vive, não se trata de cadáver.
Se houvesse de fato critérios científicos, ou seja, a observação inequívoca da ausência de atividade cerebral, o conceito de “morte cerebral” não estaria tão comprometido com a subjetividade do legislador.
FB: Se existem critérios diferentes para “morte cerebral” de acordo com o país e sua legislação, tal conceito só pode ser legal, ainda que se valha de critérios “científicos” para esse diagnóstico. A ciência empírica (moderna) não avalia a causa formal, portanto não é competente para afirmar se há ou não morte, quando é evidente (pelos sinais vitais) que o paciente vive. Afinal se não estivesse vivo – com o coração pulsando – não se transplantaria órgão nenhum.
Me explico: Os sinais vitais são frequência cardíaca, temperatura corporal, frequência respiratória, pressão arterial e resposta a dor.
Como não houve resposta do padre, precisei encontrar algumas explicações às indagações que surgiram de outros leitores do próprio site. Caso deseje, confira o link do primeiro parágrafo.
Mas afinal, se não existe morte cerebral, por que existem critérios legais na maior parte dos países, se não em todos? Em outro artigo prometo fazer o histórico de tão “sólida” certeza científica. Por ora, basta-me expor o que a ‘experiência humana ensina’.
Em 2014, Dom Lourenço Fleichman me pediu o link de um artigo que comentei numa de suas aulas. Trata-se de mais um episódio de reversão da morte cerebral, desta vez em uma jovem no Paraná. Disse-me: ‘Faço uma coleção desses casos para um artigo futuro’.
Como o dessa jovem , podemos citar muitos outros casos, mas neste artigo me atenho a este último que nos chega da Sardenha, em que a impostura do método e a frieza do examinador parecem mais claras.
Os jornais de Sassari, cidade da ilha da Sardenha na Itália, reportaram neste último novembro mais um desses casos de reversão da morte cerebral, desta vez em uma senhora octagenária. A reportagem descreve em tom cômico o que considera apenas um equívoco do médico, nem milagre nem estupidez do método ou do examinador.
Traduzo: “Em Uri, vilarejo em que vive, anteontem 12 de novembro, os sinos já haviam anunciado a defunta. E os familiares, embora resignados, já haviam acordado com o pároco os tramites do funeral. Tudo pronto: caixão comprado e burocracia concluída para o mausoléu. Só que a senhora de 80 anos protagonista deste caso singular estava ainda viva, em condições graves”. Alguns dias depois os médicos diagnosticam-na com morte cerebral, desta vez “sem equívocos”. Diz a reportagem de 21 de novembro: “Hoje, depois de deixá-la em observação durante todo o dia, e constatado que não havia mais nenhuma dúvida sobre sua morte, foram removidos o fígado e os rins, com a autorização dos familiares”.
Como médico eu fico imaginando: O que se passou entre os dias 12 e 21? Posso estar enganado, mas apostaria que nesse período a senhora manteve-se em estado vegetativo, provavelmente sem possibilidade terapêutica, e os médicos continuaram a testar o método até encontrar os critérios de morte cerebral que a legislação italiana definiu. Não creio se tratar de mercenários, nem de gente sem escrúpulo ou cuidado, apenas me parece que num caso tão grave, em que as esperanças são tão ínfimas, as pessoas tendem a optar pela solução mais fácil. Posso ainda estar errado quanto aos acontecimentos do período, mas se removeram seus rins e fígado ao fim, é porque seu coração batia, e portanto vivia.
Não podendo alongar a discussão em um só artigo, nem esgotar assunto tão polêmico, quero salientar ainda mais dois aspectos: primeiro, a base legal da morte cerebral, que usa e depende de equipamentos e médicos para diagnosticar a irreversibilidade de um estado gravíssimo de saúde, mas que em si, não constitui a morte.
Em segundo lugar, a indefinição do que é vida e morte na formação dos profissionais de saúde (não digo discussão, pois essa há em demasia), especialmente dos médicos, que esbanjam primazia técnica mas ignoram a natureza das coisas.
De quem seria a culpa? Há certamente a culpa da omissão por parte dos homens de igreja, pois deveriam ensinar aos médicos e legisladores a sã doutrina, com sua moral natural e o verdadeiro espírito de caridade para com o próximo.
Os médicos, legisladores, homens públicos e cientistas de uma maneira geral compõem o tecido social alimentado por esse materialismo moral, que entende o homem como uma máquina e sua alma como uma abstração, ou ainda uma energia cósmica, sendo culpados como partícipes desse sistema.
Por último, não esqueçamos daqueles que fazem do transplante de órgãos e da morte cerebral seu ganha-pão, que se beneficiam da fraqueza de uns e da ignorância de outros.