O que marca a fundação do Brasil: o consenso ou o conflito? O que marca a nossa origem como nação: a tradição, que une o antigo e o novo, ou a guerra?
As sociedades podem ser forjadas a partir daquilo que se chama uma “teoria do consensus” ou a partir de uma “teoria do conflito”. O consensus tem uma raiz no pensamento do jesuíta Francisco Suárez, que escreveu sobre o assunto em De Legibus ac Deo Legislatore (1601-1603). Para Suárez, só há um poder de instituição divina, o Papado. Já o rei é aquele que recebe de Deus o poder por intermédio do povo – e daí viria a noção de consensus como fator de legitimação do poder real. A legitimidade do poder está associada a um assentimento do povo, não de modo dissociado, mas num consórcio entre direito e comunhão de utilidades naturais.
Ao contrário, do ponto de vista da teoria do conflito, a fundação da sociedade é fruto de uma dissociação, de um dissídio, entre passado e presente, anterior e posterior, centro e periferia, pai e filho. É justamente essa a tônica do comportamento político moderno, pois vincula-se à noção de movimento constante, em que o progresso é produto de rupturas. As teorias mais radicais sobre a democracia enfatizam seu suposto caráter “agonístico”, defendendo a intensificação dos debates, movimentos, greves e lutas, como forma desejável de democracia. Como prega a sociologia de Georg Simmel, os conflitos são a marca permanente da vida moderna, e o máximo que se pode fazer é encontrar formas de administração desses conflitos.
O temperamento de cada nação também contribui para uma predisposição ao consenso ou ao conflito. Stendhal escreveu que cada nacionalidade se define por aquilo que produziu de mais característico e melhor em sua cultura. A Espanha, por exemplo, estaria marcada por uma certa forma de heroísmo radical e idealista, encarnado em figuras como Santo Inácio de Loyola e Santa Tereza d’Ávila, mas também personagens que transitaram entre o real e o ficcional, como El Cid ou Dom Quixote. Nesse sentido, o espírito espanhol é fogoso, intenso, colérico.
Ainda que vizinhos dos espanhóis, os portugueses parecem ter ido por outro caminho. Desde a origem, surgiram do amálgama, amarrado por um amor maior, de povos visigodos, de judeus e de mouros convertidos à fé cristã. Foi esse povo português que saiu para o além mar, e, se carregava consigo a “saudade” como um destino e um fado, revelou também uma capacidade única de se relacionar nos cinco continentes com tantos povos diversos, de forma até mesmo dócil e compartilhada.
A religiosidade em Portugal é diferente da espanhola – veja-se a densidade do seu barroco, mais leve, mais maleável às particularidades, como se destaca nas obras de Aleijadinho em Minas. É possível arriscar que a melancolia define o temperamento que marca a nacionalidade portuguesa.
Como filhos de Portugal, os brasileiros também herdaram esse caráter parcimonioso na política, na religião e nas relações. Isso não significa projetar a ilusão de um passado sem disputas, conflitos, violências, abusos e erros. Mas é preciso compreender que o âmago do Brasil é o consenso. Foi assim na sua formação e é assim que o país se encontra consigo próprio.
Em 2022, comemoraremos o Bicentenário da Independência, quando teremos a oportunidade de revisitar os principais atos públicos da nossa fundação. É possível identificar como a doutrina política subjacente, a partir da filosofia de Francisco Suárez, foi mobilizada para esses eventos marcantes. Para Suárez, a primeira fonte de poder é Deus. Em segundo lugar a comunidade civil ou “democracia natural”, que corresponde ao período prévio à formação do corpo político e é fonte indireta do poder. E, em terceiro, o pacto de sujeição, que concede ao chefe político a titularidade do poder. Justamente essas três formas estiveram presentes na simbologia que explica a origem do Brasil, dentro da “teoria da translação” suareziana, a partir das cerimônias de sagração, aclamação e coroação do rei.
De forma consciente, cada um desses eventos correspondeu a uma dessas origens do poder, perfazendo uma união entre a tradição escolástica da política lusitana, e a nova nação que ali surgia. A Aclamação foi em 12 de outubro de 1822, no Campo de Santana. A Sagração e a Coroação ocorreram no mesmo dia, em 1º de dezembro de 1822 na Igreja do Carmo.
Vale a pena meditarmos sobre essa nossa fundação, e como ela configura nossa trajetória, como houve uma combinação entre o espírito luso-brasileiro e a recepção de uma teoria do consensus. De que maneira somos capazes de fazer tamanhas transformações sociais, de forma mais lenta e duradoura, mas, ao mesmo tempo, menos dramáticas, sanguinárias e traumáticas.
Torna-se difícil comparar a sorte de guerras civis que o Brasil teve na Regência, na Primeira República, assim como quaisquer períodos de ditadura, com o que aconteceu nos países vizinhos da América Espanhola. Praticamente todos eles viveram em guerra por anos a fio. A Colômbia, por exemplo, teve 15 constituições no século XIX, e para cada uma se contava um conflito sangrento no seio da população.
Em 2019, a ira tomou conta de jovens arruaceiros no Chile, como vem provocando convulsões em outros países da região. No Chile, se vê o enfrentamento da esquerda contra um governo liberal, que por sua vez se tornou desmoralizado e indefensável, sobretudo, desde que aprovou o aborto. Mas é claro que os revoltosos não estão preocupados com a vida, no fundo mal sabem o que querem, mas querem o conflito, o movimento, o quebra-quebra, as ruas. O resultado é que até o dia 15 de novembro se calculavam mais de 22 pessoas mortas e 2.200 feridos. Ainda assim, dia a dia chegam notícias de que as mobilizações não param e o conflito continua.
Em 2013, o Brasil passou por uma onda semelhante de protestos que se tornaram bastantes violentos com as ações dos black blocs, grupos mascarados que no meio das massas provocavam incêndios, lançavam coquetéis molotov, quebradeiras e toda forma de quebra da ordem. Logo que um fogo de artifício lançado por um black bloc matou um cinegrafista de TV o movimento arrefeceu. Houve uma espécie de paralisia imediata, um cessar-fogo recepcionado até mesmo pelos políticos de esquerda mais radicais. É pertinente a comparação com o “2013 chileno”, que acontece agora, quando o conflito é irrefreável. Quando olhamos dessa forma é possível reservar uma gratidão a Nosso Senhor por nossas raízes lusitanas, nosso temperamento mais melancólico, por nossa origem no consensus, e como isso tudo ainda exerce alguma força em nosso cotidiano.