Recebemos do Chile o texto seguinte, que tenta explicar as causas dos acontecimentos recentes. O autor é Augusto Merino, renomado professor de ciência política do país, e católico tradicionalista. A tradução do artigo é nossa.
Para resumir com máxima concisão o que está acontecendo no país, diremos que se trata de um triunfo da esquerda internacional, que avança com sua agenda de ruptura contra a cultura cristã ocidental. O recente acordo firmado por todas as forças políticas no sentido de elaborar uma nova constituição política a partir do zero, sem considerações pelos valores contidos na atual constituição, é o testemunho mais eloquente disso. Nenhuma das demandas socioeconômicas dos cidadãos foi atendida e, no entanto, tornou-se impossível dar um passo atrás para proteger os princípios cristãos que, embora de maneira débil, até hoje constituíam o fundamento moral do Chile.
Para explicar os acontecimentos do mês passado é preciso um certo distanciamento: o que aconteceu não foi um simples “surto”, nem mesmo uma “convulsão popular de caráter econômico-social”, ainda que tenha sido apresentado amiúde com esses nomes, e que o aumento do preço do metrô tendo servido de gatilho.
Os eventos recentes (muito mais violentos que os da Unidad Popular de Allende) são uma expressão, diferida no tempo e no espaço, do colapso da cultura do Ocidente, claramente iniciado há pelo menos 300 anos, com o Iluminismo e a Revolução Francesa. Sem considerar a cultura, não se pode compreender o que acontece no Chile — todos os outros elementos explicativos são secundários.
Nesse colapso, é necessário destacar a responsabilidade que cabe à Igreja, porque era nela que se estribava o núcleo da cultura que presidia a vida do país. A ruína da Igreja chilena e sua perda de ascendência sobre a vida nacional se acelerou após o Concílio Vaticano II — com o qual o clero se alinhou em bloco e resolutamente, como em outras partes do mundo — e fez com que a moral cristã entrasse em colapso em não mais de vinte anos, pelo trabalho de um clero corrupto, sem instrução e teologicamente ignorante, sem outra orientação intelectual e moral que a “teologia da libertação”, em sua versão mais crua.
O mais grave é que o repúdio à Tradição da Igreja e a adesão à nova Liturgia levaram à destruição dos símbolos e das chaves de interpretação da realidade próprios da Fé, contidos nos antigos ritos descartados, e também à dissolução dos laços sociais garantidos por eles.
O vazio espiritual e moral em que a sociedade chilena se encontrava por volta dos anos 80 foi prontamente preenchido por seitas e movimentos tais como a “Nova Era”: hoje surpreende no Chile o distanciamento em que nos encontramos, não só do pensamento, mas da vida católica.
O clero atual, liderado por bispos inadequados para as necessidades da época, não oferece ao povo mais do que um discurso horizontal, no qual pululam palavras como “solidariedade”, “fraternidade” e “amizade cívica”. O único bispo chileno, entre os mais de trinta do país, a denunciar a tentativa das últimas décadas de se construir uma sociedade sem Deus, pertence a uma pequena diocese do sul, Villarrica.
Dito isso, entende-se a importância dos jovens na crise: as novas gerações são solidamente descristianizadas e carentes de referências culturais que as orientem. Quem lidera o caos e o vandalismo no Chile não são os trabalhadores, nem os “pobres”, nem os “lumpens”, mas, precisamente, estudantes universitários e secundaristas. São eles que, sem raízes culturais, sopram os ventos utópicos que alimentam o fogo atual.
Se a “deflagração” teve de começar apelando a motivos e causas compreensíveis para a maior parte da população (reivindicações econômicas e sociais), rapidamente se despojou delas e apareceu, alguns dias atrás, o verdadeiro motivo subjacente: a refundação da sociedade a partir do zero, por meio de uma “nova constituição” — a grande bandeira que se agita hoje — escrita em uma “página inteiramente em branco”, isto é, sem nenhum vínculo com a história anterior. O que se busca é a destruição do “sistema”, uma idéia vaga cujos limites são desconhecidos.
A perda de respeito da juventude por tudo — pelos mais velhos, pela tradição, pelos heróis, pelos sábios, pelos poderes sociais, pelas hierarquias, pelos valores — nos traz de volta a um dos eixos da revolução moderna: a perda do sentido de autoridade, que é a base da crise atual e da barbárie (entendida em sentido técnico) que se aproxima.
Isso seria administrável se a elite política que está no poder tivesse alguma consciência do que foi dito acima. Mas ela também é produto da destruição da sociedade chilena, impulsionada pela decomposição da Igreja (como evidenciado pela aprovação do aborto, das uniões civis etc.).
Nem o Presidente Sebastián Piñera nem os líderes da direita política souberam diagnosticar o colapso cultural que estava acontecendo, e, quando a crise ocorreu, não souberam interpretá-la. Eles só reagiram, com terror, aos acontecimentos diários e sempre no sentido de abandonar projetos, idéias e programas políticos. A elite empresarial, que compartilha as mesmas deficiências culturais e morais dos atuais governantes, também não conseguiu prever, e hoje reage aterrorizada, tentando colocar remendos insuficientes e atrasados nas feridas sociais.
Sobretudo, o Presidente foi incapaz de usar as ferramentas do Estado — ou seja, o uso da força — para recompor a ordem pública, paralisado que estava pela ideologia ludibriante dos direitos humanos, que substituiu a doutrina do bem comum como guia da ação do Estado. Um Estado em crise também faz parte dos objetivos da esquerda.
Outro elemento que ajuda explicar o que aconteceu foi sugerido pela Ciência Política há pelo menos 60 anos: o momento mais perigoso do crescimento econômico de um país subdesenvolvido é o da “decolagem” econômica (como a decolagem de uma aeronave).
Os indicadores econômicos muito positivos do Chile nos últimos 30 anos falam de uma “decolagem” iminente; mas é um momento de expansão ilimitada das expectativas da população (os italianos dizem “la fame si fa mangiando”) e no Chile, onde os números macroeconômicos foram privilegiados, a distribuição de benefícios sofreu falhas muito graves.
A classe executiva tem sido particularmente cega. Se alguns dos conselhos da Doutrina Social da Igreja tivessem sido seguidos, a conflagração atual dificilmente teria ocorrido. Ninguém entendeu que crescimento econômico sem equidade é um barril de pólvora. Por outro lado, a esquerda internacional não poderia aceitar o sucesso de um modelo econômico como o do Chile, que desacreditaria todos os seus modelos utópicos.
A explicação também exige que a intervenção de organizações anarquistas estrangeiras na crise seja levada em consideração. A estratégia delas ficou clara desde a primeira noite de protestos: provocar o caos pela paralisação da capital.
Para atingir os seus objetivos, inutilizaram o metrô e interromperam o abastecimento da população, coisas que tiveram forte impacto sobre a população mais carente, cuja adesão a aventuras posteriores era necessária. O governo, porém, percebeu tarde, quando o dano já era imenso e a situação era impossível de se controlar.
A intervenção de Cuba (não pela primeira vez no Chile), da Venezuela, de anarquistas argentinos e de outros elementos dessa natureza, inflamaram uma juventude chilena faminta de utopias e, além disso, a organizaram e financiaram.
Concluindo, o Chile experimentou o mesmo processo político-cultural que o resto dos países do Ocidente: a “esquerdização” da vida pública, sempre intimamente associada à descristianização e à secularização. O Chile é governado pela esquerda há quase 20 anos, desde o final do governo de Pinochet.
E a “saída” que foi acordada com o governo hoje — a elaboração de uma nova Constituição — é o triunfo mais completo da esquerda, que está se preparando para eliminar da nova constituição todos os valores cristãos que foram instalados nela, colocados ali por aqueles que intervieram na sua redação primitiva, e muitas vezes reformada, na década de 80.